Por Norian Segatto
– E aí, pretinho, tá olhando o quê?
… Silêncio.
– Eu perguntei o que cê tá encarando, moleque?
– Não estou encarando nada.
– Nada, o quê?
– Nada, não, senhor.
– Desce agora, pretinho!
– Não é meu ponto aqui… senhor.
– Eu mandei descer, porra.
Ninguém intervém, quase ninguém sequer respira.
Com a mão no coldre da arma, o policial branco manda o rapaz negro descer do ônibus pelo crime de estar supostamente o encarando – ou pelo simples fato de ser preto e pobre.
Trêmulo, ele desce, o PM atrás dele dá-lhe um empurrão que o faz ir ao chão… o ônibus sai lentamente, algumas pessoas olham pela janela do fundo o desenrolar da cena, outras nem isso têm coragem. A imagem vai se afastando da retina como um efeito cinematográfico, um necessário esquecer pelo distanciamento; por aquela tela em tons cinzas ainda dá para ver o garoto abrir a mochila e mostrar uma marmita, antes de levar um tapa do policial, que o faz cair novamente, e receber um pontapé para finalizar a lição e aprender qual é o lugar de preto.
Dentro do ônibus quase ninguém fala, uns por indiferença, outros por medo de que mais algum policial se materialize do nada, dois rapazes brancos riem da cena.
Uma senhora negra de meia idade comenta comigo quase em tom de confidência, olhos marejados; ela, provavelmente, uma mãe que diariamente passa pela mesma aflição de esperar o filho voltar sem uma bala no peito.
– É assim todo dia lá onde eu moro. Nossa cor é a cor do medo.
Desço do ônibus sentindo vergonha de ser branco e pensando o que poderia ter feito: encarado o policial, gritado para ele parar, tentar chamar outros que estavam no mesmo coletivo para enfrentar o homem da lei armado? Nada fiz, como os demais, me calei e naquele dia eu, também ainda um rapazola, aprendi que sozinho pouco se pode fazer, aprendi que a batalha é coletiva.
Décadas depois a imagem desse episódio permanece viva na lembrança e, desde então, me acompanha a certeza de que há algo de profundamente errado entre nós e muito o que se fazer.
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Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil