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Preconceitos ampliam dificuldades de acesso de mães presas a benefícios legais

Racismo e machismo, entre outras discriminações, mantêm maioria das detentas encarcerada muito mais tempo do que deveriam, contribuindo para agravar a ruptura das relações familiares

Brasília – “Tive meu filho algemada pelos pés e pelas mãos, uma coisa, assim, bem forte. E, aos três meses de vida, ele teve que ir embora. Aí, meu mundo desabou, você só fica com a parede”. O relato da chef confeiteira Desirre Mendes Pinto, ex-usurária de drogas presa por tráfico, mostra a realidade das mães e gestantes nas cadeias brasileiras.

Apesar de leis preverem penas alternativas, incluindo a prisão domiciliar para mulheres gestantes e com filhos de até 12 anos – medidas recentemente aprimoradas na Lei da Primeira Infância – o Judiciário tem sido conservador nas condenações dessas mães. A avaliação é das organizações de defesa dos direitos humanos que apoiam proposta inédita de indulto (perdão ou redução de pena) para mulheres condenadas por tráfico de drogas em até cinco anos.

Elaborado pelo Ministério da Justiça, por meio do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, o documento já conta com adesão de 200 organizações e está sob análise da Casa Civil. O indulto pode ser assinado pela presidenta Dilma Rousseff nos próximos dias.

De acordo com estudo do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, organização não governamental que há 15 nos atua no setor, e da Pastoral Carcerária, são mães 80% das mulheres que estão presas. A maioria das condenadas por tráfico de drogas é formada por mulheres negras. São, via de regra, as únicas responsáveis pelo sustento do lar que, muitas vezes, se desintegra quando são encarceradas.

“Quando eu vim para casa, meus filhos estavam largados, com problemas no Conselho Tutelar, respondendo [fazendo pirraça], eles eram agressivos. Hoje estão mais tranquilos, não têm problemas na escola, eles se acalmaram”, contou Raquel dos Santos Machado. Ela foi presa por traficar uma pequena quantidade de drogas “para comprar fralda e leite” e conseguiu recorrer em liberdade. Raquel saiu da cadeia dois dias antes do nascimento de sua filha mais nova.

O encarceramento feminino cresceu 570% entre 2000 e 2014, segundo o Ministério da Justiça. No entanto, reverter o número de prisões preventivas e provisórias não é “uma utopia” e a lei já oferece alternativas. “Essas medidas mudam a vida dessas mulheres. Permitem que estejam com os filhos, sustentem e cuidem de suas crianças, que de outra forma estariam desassistidas”, frisou Raquel da Cruz Lima, coordenadora do Programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC.

Diversas organizações vêm denunciando que o encarceramento coloca em risco a saúde dessas mulheres, assim como a gestação, o parto e o cuidado com os filhos e com idosos, os quais costumam ficar sob responsabilidade dessas mulheres. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) também cobra penas alternativas e prioridade no julgamento de grávidas para proteger as crianças.

Acesso à defesa não é universal

A organização não governamental Criola, de defesa dos direitos das mulheres negras, acredita que fatores como a dificuldade de acesso à defesa e o racismo prejudicam a concessão de benefícios previstos em lei.

“Quando a pessoa que cometeu um crime ou está em situação de violência é negra o processo muda completamente, ela é a culpada natural”, criticou Lúcia Xavier, coordenadora técnica da ONG. Como exemplo, lembrou o caso de Ana Kellen Moura, negra, mãe de uma criança de três anos e presa há quase um ano sem julgamento. O caso ganhou repercussão depois que uma campanha pedia sua libertação.

“No caso de Ana, mesmo a investigação sendo frágil, ela continua presa, tendo endereço fixo e sendo réu primária. A defesa não consegue reverter”, explicou Lúcia, lembrando que tais fatores justificariam a concessão de penas alternativas.

A guarda do filho de Ana foi dada para a família do pai, que é belga e só conhecia o menino pela internet, decisão que, para Lúcia, configuraria mais um indício de racismo na forma como a Justiça lidou com o caso.

Julgamento moral

A diretora de Políticas Penitenciárias do Ministério da Justiça, Valdirene Daufemback defende que, diante de situações como essa, o Judiciário deve cumprir a Lei da Primeira Infância, que recentemente ampliou o escopo de medidas alternativas à pena de prisão, e rever o encarceramento como única resposta ao crime.

“Estão igualando Justiça à prisão. Mas a grande maioria que está na prisão, até 80%, em algumas regiões, estão envolvidas no pequeno tráfico. São mulheres que traficam para manter a família”, confirma. “O caso delas precisa ser visto diferentemente do que de um grande traficante”, disse.

A coordenadora do ITTC cobra o fim do julgamento moral das mulheres. Segundo Raquel, elas são mais severamente punidas. “O fato de um homem cometer crime não é visto como um desvio do papel social. O juiz nunca vai perguntar para um homem se ‘ele não tem vergonha de vender drogas para criar um filho'”, criticou. “As mulheres ouvem isso cotidianamente”, assim como são xingadas e recebem ofertas de propina sexual, denunciou.

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