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Campanhas que promovem a banalização da depressão, pouco ou nada ajudam no enfrentamento ao suicídio

18set2025 Por Marcella Milano*

O suicídio atinge anualmente mais de 700 mil pessoas em todo o mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde; no Brasil, estima-se que diariamente cerca de 40 pessoas cometam o ato de tirar a própria. Com o intuito de conscientizar sobre a prevenção ao suicídio, desde 2015 o Brasil adotou o “setembro amarelo”, iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e do Conselho Federal de Medicina, encampada pelo governo.

A campanha, porém, está longe de ser unanimidade entre as entidades e organizações de saúde e de psicologia. Diferentemente de outras iniciativas, como campanhas para exame de próstata ou câncer de mama, em que se busca formar mutirões para a realização de exames, a campanha de prevenção ao suicídio não deve estar limitada a um mês, mesmo que simbolicamente; tratar da saúde mental da população é uma ocupação que começa no dia 1º. de janeiro e continua até 31 de dezembro, com abordagens que fujam do estigma da patologização do indivíduo.

Para o psiquiatra Paulo Amarante, pesquisador sênior da Fiocruz e fundador da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), “atribui-se, talvez exageradamente, o suicídio a crises de depressão como se fosse um problema patológico, mas esse fenômeno tem muito mais a ver com outras situações emocionais, não se trata de um transtorno, é um momento de crise impulsiva, de um conjunto de condicionantes sociais que leva a um desfecho trágico”.  

Originariamente, a data teve início nos Estados Unidos em 1994, quando no dia 10 de setembro daquele ano, Mike Emme, de 17 anos, tirou a própria vida; em seu funeral, os pais distribuíram fitas amarelas em referência a um automóvel Mustang, que o jovem havia restaurado.

Aumento de casos durante o setembro amarelo

Apesar de a campanha existir no Brasil há dez anos, o aumento dos casos de suicídio acende um sinal amarelo de que algo além deve ser feito. Segundo dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, as notificações de suicídio aumentaram 43% no Brasil em uma década, passando de 9.454, em 2010, para 15.507, em 2021. O Boletim Epidemiológico n. 4, de fevereiro de 2024, da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, do Ministério da Saúde, aponta que “na última década, o Brasil enfrentou um crescimento preocupante no número de suicídios, que se consolidam como um grave problema de saúde pública. Em 2021 houve mais de 15,5 mil suicídios, equivalente a uma morte a cada 34 minutos. Essa trágica estatística posicionou o suicídio como a 27ª. causa de morte no país e terceira maior causa na população jovem”.  

O Boletim alerta, também, para o número de suicídios entre a população indígena. “Os dados revelam uma elevada carga de suicídios entre indígenas em relação a outros grupos raciais. Análises anteriores já haviam destacado essa grave realidade, indicando que a taxa de suicídios entre indígenas no Brasil é aproximadamente três vezes maior que a da população geral”, aponta o documento.

Outro dado que chama a atenção é o estudo Associations between a Brazilian suicide awareness campaign and suicide trends from 2000 to 2019 (Associações entre uma campanha brasileira de conscientização sobre suicídio e tendências de suicídio de 2000 a 2019), coordenado pelo psiquiatra Rodolfo Damiano, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, juntamente com pesquisadores de quatro universidades brasileiras, da organização sueca Karolinska Institutet, e da Child Mind Institute, dos EUA, que indica que no Brasil, desde 2015 (quando foi instituída a campanha do Setembro Amarelo), os casos aumentaram e houve a tendência de se concentrarem nos meses próximos a setembro. “Após a implementação da campanha ‘Setembro Amarelo’, os suicídios tenderam a se concentrar mais nos meses seguintes a setembro, demonstrando uma interação significativa entre o período e a campanha”, afirma Damiano, e conclui: “observamos um aumento nas tendências suicidas no Brasil, em contraste com a tendência global, que coincide com o início de uma grande campanha nacional de conscientização. Embora não possamos atribuir causalidade, nossos resultados reforçam a necessidade de mais estudos para melhor compreender o papel das campanhas de conscientização nas intervenções de redução do suicídio, incluindo potenciais efeitos indesejados”.

Uso de antidepressivos

Diversos estudos vinculam o uso prolongado de antidepressivos a tendências suicidas. Artigo publicado pela American Academy of Child and Adolescent Psychiatry (Academia Americana de Psiquiatria de Crianças e Adolescentes), com o título “antidepressivos aumentam o risco de suicídio em crianças e adolescentes?” aponta que “em junho de 2003, a Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos de Saúde (MHRA), alertou os médicos sobre o possível aumento do risco de ideação suicida ou suicídio em crianças e adolescentes que tomam paroxetina (um ISRS – Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina). Após uma análise mais aprofundada dos dados sobre todos os ISRS, a MHRA concluiu que, com exceção da fluoxetina, os ISRS não se mostraram eficazes para jovens com depressão e podem aumentar o risco de ideação ou tentativas de suicídio”.

O neurocientista Sidarta Ribeiro, em entrevista ao PodSin, podcast do Sindicato das Psicólogas, afirma que “o sistema (leia-se indústria farmacêutica e associações psiquiátricas) quer que acreditemos que a depressão tem a ver com a baixa serotonina. Depressão tem a ver com vínculos afetivos ruins ou inexistentes”.

Em artigo de 2021 traduzido pelo site Mad in Brasil, o pesquisador Peter Simons aponta a interferência de interesses financeiros na condução de pesquisas que tentam provar que o uso prolongado de ISRS não tem correlação com o aumento de taxas de suicídio. “Estudos têm encontrado resultados inconsistentes, sendo que muitos sugerem que as drogas aumentam efetivamente o suicídio, especialmente em crianças e jovens adultos. Contudo, alguns estudos encontraram resultados pouco claros, sugerindo que os fármacos podem não aumentar ou diminuir o suicídio”, aponta Simon no artigo.

Em novo artigo, no mesmo site, em 2023, Peter Simon destaca um estudo, conduzido por Shannon Lange, do Institute for Mental Health Policy Research (Instituto de Pesquisas Políticas de Saúde Mental) em Ontário, Canadá, publicado no The Lancet Regional Health: Americas, que indica a conexão entre fatores socioeconômicos e taxas de suicídio. “Especificamente, usando 20 anos de dados, identificamos os seguintes fatores contextuais como tendo contribuído para as taxas de mortalidade por suicídio na região: uso de álcool, desigualdade educacional, gastos com saúde, taxas de homicídios, uso de drogas intravenosas, número de médicos empregados, densidade populacional e taxa de desemprego”.

Campanha insuficiente

Outro questionamento que muitas entidades fazem ao Setembro Amarelo, e o Sindicato das Psicólogas de São Paulo se inclui entre elas, é a banalização das campanhas de conscientização, que se tornaram um amontoado de frases rasas motivacionais e de autoajuda, como se isso bastasse para enfrentar um problema tão complexo como esse. Empresas usam o chamado “marketing amarelo” para promover seus produtos, um dos exemplos mais melancólicos foi o de uma empresa que distribuiu sachês de chá de camomila em embalagens amarelas para seus empregados como se isso fosse a solução para combater a depressão.

Para tratar de depressão e sofrimento mental temos de discutir assédio moral e sexual nos ambientes de trabalho, desemprego, baixos salários, trabalho precarizado, relações afetivas desgastadas, isolamento social, efeito das redes (anti)sociais, política de medicalização e patologização, bulling e violência escolar, racismo e lgbtfobia, uso descontrolado de agrotóxicos que comprovadamente induzem a tendências suicidas, políticas públicas de valorização do SUS e do SUAS, enfim, uma miríade de fatores que se interrelacionam e não se concentram em um único mês, ou em uma campanha motivacional que, em geral, desvia o foco de atenção dos problemas sociais, apontando o suicídio como uma questão meramente individual de saúde mental.

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* Marcella Milano é presidenta do SinPsi-SP

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